segunda-feira, 17 de maio de 2010

Os Essênios: a Racionalização da Solidariedade

A Descoberta
No dia 18 de fevereiro de 1948, John C. Trever, das  "American Schools of Oriental Research" (ASOR), recebe, em Jerusalém, um telefonema do monge Butros Sowmy, professor e secretário do mosteiro sírio-ortodoxo de São Marcos, situado na mesma cidade. O assunto é a identificação de uns manuscritos escritos em hebraico antigo, que ele não consegue classificar ao organizar a biblioteca.
Na tarde do dia seguinte, o monge Butros leva à Escola Americana cinco rolos de pergaminho. J. C. Trever, ao compará-los com as fotografias do papiro NASH[1], sente o coração disparar: o hebraico dos manuscritos é extremamente parecido com o deste texto do séc. II a.C. Para quem sabe que os textos bíblicos hebraicos mais antigos que possuímos, e que servem de base para as nossas Bíblias (AT), vêm dos séculos IX e XI de nossa era, o caso é ainda mais emocionante[2].
Pois o que Trever descobre ainda naquele dia, junto com seu colega William H. Brownlee, é que o pequeno trecho que ele copiara do rolo maior é um versículo do livro de Isaías[3].
Jerusalém está, neste começo de 1948, em plena guerra árabe-israelense[4] e os contatos entre os especialistas americanos e os monges sírios são extremamente difíceis. Mesmo assim, Trever consegue que os manuscritos sejam levados novamente à ASOR e obtém a permissão do metropolita da comunidade síria, Mar Atanásio Josué Samuel, para fotografá-los. Entretanto, até este momento, nem os sírios estão dispostos a dizer de onde vêm os rolos, nem os americanos lhes revelam sua antigüidade e importância.
No dia 26 de fevereiro, Trever envia algumas fotografias dos manuscritos a W. F. Albright, nos Estados Unidos, e pede sua opinião[5].
No dia 5 de março quando os manuscritos seriam fotografados para publicação, os sírios contam a Trever que os rolos foram comprados, em 1947, de uns beduínos que vivem na vizinhanças de Belém e que eles os haviam encontrado em uma gruta na região do Mar Morto.
No dia 15 de março, Trever recebe a resposta de Albright, que lhe garante ser esta "a descoberta mais importante de manuscritos dos tempos modernos" e acrescenta: "Eu os dataria em torno do ano 100 a.C."[6].
No dia 18 de março de 1948, M. Burrows, diretor da ASOR, Brownlee e Trever comunicam a Mar Atanásio Josué Samuel a importância dos manuscritos. Convencem também o metropolita sírio a levar os manuscritos para fora da Palestina, dada a situação precária de Jerusalém, submetida a pesada guerra.
No dia 25 de março os manuscritos são depositados em um cofre de banco em Beirute. E no dia 11 de abril de 1948 a central da ASOR em New Haven (USA) divulga a notícia da descoberta.
Agora voltemos um pouco mais no tempo, até o fim de 1946. E a uma tribo de beduínos seminômades que vive no deserto de Judá, os ta'amireh.
Jarro de 
QumranNo fim de 1946 (novembro ou dezembro) os ta'amireh estão pastoreando seus rebanhos em Ain Feshka, oásis próximo ao Mar Morto. Três pastores, Khalil Musa, Juma Mahoma Khalil e Mahoma Ahmed el-Hamed, cognominado ed-Dib (o lobo), descobrem em uma das grutas da região uns jarros de argila e em um deles três rolos[7].
Em março de 1947 os beduínos deixam os três rolos com o antiquário de Belém Abraham Iylia que, temendo terem sido roubados de alguma sinagoga, os devolve no dia 5 de abril.
No começo do verão de 1947 os ta'amireh encontram mais quatro rolos na mesma gruta. Três deles são vendidos a E. L. Sukenik, reitor da Universidade Hebraica de Jerusalém, no dia 29 de novembro de 1947[8].
No dia 19 de julho de 1947 o mosteiro de São Marcos adquire os outros quatro manuscritos dos beduínos por cerca de 97 dólares[9].
Os sírios tentam, sem sucesso, junto a vários estudiosos, identificar os manuscritos. Até que procuram os americanos, como assinalei.

[1]. O papiro NASH consiste de uma folha de papiro, escrita em hebraico, com o texto do Decálogo (Ex 20,2-17 = Dt 5,6-21) e do Shema (Dt 6,4-5). Seu nome vem de W. S. Nash que o adquire no Egito. W. F. Albright o data na segunda metade do século II a.C.
[2]. O texto hebraico já está fixado no século II d.C. Nos séculos seguintes os escribas copiam novos rolos, procurando limitar os erros de transcrição ao mínimo. Para a compreensão correta do texto eles começam a fazer anotações nas margens, assinalar palavras duvidosas etc. No século V entram em ação os chamados massoretas. O termo vem do hebraico masar = "transmitir" e os massoretas são os "transmissores" do texto. Além de fazer anotações sobre o texto, estes sábios judeus sentem a necessidade de vocalizá-lo e acentuá-lo, para se obter um texto mais uniforme e fixo. Neste processo cada escola segue um método diferente, como a oriental, sediada na Mesopotâmia e a ocidental, na Palestina. Depois de muitas peripécias, prevalece a escola de Tiberíades (Palestina) aí pelo ano 900 d.C. E em Tiberíades as famílias Ben Neftali e Ben Asher. Desta última temos dois manuscritos importantíssimos: o manuscrito massorético mais antigo, Codex do Cairo, escrito e vocalizado por Moisés ben Asher, data do ano 895, mas só contém os profetas (anteriores e posteriores). O mais precioso é, porém, o Codex de Aleppo, quase completo, escrito e vocalizado por Aarão ben Moisés ben Asher, até 930. Pertencia à sinagoga de Aleppo e é salvo da destruição em 1948, sendo levado para Israel. Um terceiro manuscrito importante é o Codex de Leningrado, baseado nos manuscritos de Aarão ben Moisés ben Asher. Este contém todo o AT e é escrito em 1008. A melhor edição crítica que possuímos hoje - que é a Bíblia Hebraica Stuttgartensia - baseia-se principalmente neste manuscrito.
[3]. Todos os detalhes desta descoberta podem ser lidos em LAMADRID, A. G., Los descubrimientos del mar Muerto. Balance de 25 años de hallazgos y estudio, Madrid, La Editorial Católica, 19732, pp. 15-106. Para estes primeiros dados Lamadrid utiliza o relato de TREVER, J. C., The Untold Story of Qumrân, Westwood, Fleming H. Revell, 1965. Cf. também FRANK, H. T., A descoberta dos manuscritos, em SHANKS, H., (org.), Para compreender os manuscritos do Mar Morto, Rio de Janeiro, Imago, 1993, pp. 3-20; VANDERKAM, J. C., Os manuscritos do Mar Morto hoje, Rio de Janeiro, Objetiva, 1995, pp. 1-30.
[4]. "Ben Gurion, líder da Agência Judaica, proclamou a 14 de maio de 1948 a fundação do Estado de Israel. Os árabes, sentindo-se lesados e incitados pelas lideranças feudais, demagógicas, declararam no dia seguinte guerra ao Estado sionista, embora estivessem totalmente despreparados (...) Mal equipados, destreinados, os exércitos árabes foram fragorosamente derrotados pelos sionistas", comenta SALEM, H., O que é questão palestina, São Paulo, Nova Cultural/Brasiliense, 1986, p. 27; cf. também FRIEDMAN, T. L., De Beirute a Jerusalém, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1991.
[5]. Cf. a carta enviada a Albright em LAMADRID, A. G., Los descubrimientos del mar Muerto, p.  21. W. F. Albright é um dos maiores arqueólogos bíblicos deste século.
[6]. Cf. a carta de Albright em LAMADRID, A. G., o. c., pp. 24-25. Os americanos tentam, nesta época, chegar até às grutas da região do Mar Morto, mas a guerra os impede.
[7]. O relato dos beduínos é impreciso, mas estes rolos devem ser o manuscrito de Isaías (1QIsa), a Regra da Comunidade (1QS) e o Comentário de Habacuc (1QpHab).
[8]. Estes três textos serão identificados mais tarde como os Cânticos de Louvor (1QH), a Regra da Guerra (1QM) e um texto fragmentário do livro de Isaías (1QIsb).
[9]. São cinco rolos, mas apenas quatro textos. A "Regra da Comunidade" está partida em dois rolos. O quarto rolo é o Gênesis apócrifo (1QapGn).

Copyright © 1999-2010 Airton José da Silva. Todos os direitos reservados. Mapa do Site - Sitemap.